sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

INDEPENDÊNCIA OU MORTE?


INDEPENDÊNCIA OU MORTE?


A nominal independência política do Brasil, proclamada em 7 de setembro de 1822, não significou a independência do povo brasileiro. Pelo menos para a maior parte dele. A elite econômica da época acabou criando um liberalismo sui generis no Brasil, que visava à garantia  de seus interesses: a manutenção da escravidão, a concentração da propriedade da terra e a consolidação da unidade imperial. (...)
Paradoxalmente, o escravo, que era coisa para o Direito Civil e mercadoria para a economia da época,  podia ser sujeito ativo de crimes. Ironia perversa de nosso liberalismo: o escravo só seria reconhecido como ser humano ao praticar crimes. Sua “independência civil” muita vez só era alcançada com sua condenação à morte.
A criminalização do negro no Brasil imperial estava diretamente relacionada ao fantasma das rebeliões que afligia as elites da época. O medo do negro, do pobre, da rebelião que aflige o inconsciente coletivo da elite brasileira até os dias de hoje. O medo continua. (...)
A reação natural ao medo é a guerra ao inimigo, pois somente sua exclusão – sua morte – trará a paz. No dilema entre independência ou morte, a elite brasileira optou por sua independência à custa da morte dos mais pobres.
A solução repressiva, no entanto,  gera uma nova dependência das elites: a dependência de seu próprio medo. Os independentes estão presos em suas casas muradas, em seus carros blindados e em seus  shopping centers. (...)
Para que Portugal reconhecesse sua independência política, o governo de Dom Pedro I concordou em pagar-lhe 2 milhões de libras como compensação pela perda da antiga colônia. (...) Para que o Brasil se reconheça como independente, as elites econômicas terão que pagar às camadas pobres da população seus direitos a educação, saúde, trabalho, moradia e tantos outros garantidos na Constituição de 1988. A elite brasileira  só proclamará a independência de seus medos, quando indenizar os grupos de baixa renda pela miséria, pela exploração e pelas mortes causadas.
O dilema entre “independência ou morte” só se resolverá quando a independência de uns não estiver mais condicionada à morte dos demais. Só assim os pobres se libertarão de seus cárceres e os ricos de seus medos.
(Adaptado de: HTTP://juristas.com.br – Acesso em 13/02/07)

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O AMOR E A FILOSOFIA EM PLATÃO


O AMOR E A FILOSOFIA A PARTIR DE UM FRAGMENTO DE
“O  BANQUETE”,  DE PLATÃO.


O nascimento do amor - O Banquete, 203b-204b, Platão
De que pai ele nasceu, perguntei, e de que mãe? – É uma história um tanto longa; mesmo assim vou contá-la a ti. No dia em que Afrodite nasceu, os deuses deram um banquete. Com eles estava o filho de Métis, Poros. Depois do Jantar, Penia tinha vindo mendigar, o que é natural num dia de abundância de comidas e bebidas, e mantinha-se perto da porta. Poros, que se tinha embriagado com néctar (pois o vinho não existia ainda), entrou no jardim de Zeus e, entorpecido, adormeceu. Penia, na sua penúria, teve a idéia de ter um filho de Poros; deitou-se junto a ele e concebeu o Amor. É por isso que o Amor se tornou companheiro de Afrodite e seu servidor. Concebido por ocasião das festas pelo nascimento dela, por sua própria natureza, ama o belo – a Afrodite é bela. Então, sendo filho de Poros e de Penia, o Amor acha-se na seguinte situação: por um lado, é sempre pobre, e, longe de ser delicado e belo como acredita a maioria das pessoas, é, pelo contrário, rude, desagradável, caminha pelo mundo de pés descalços, não tem morada, dorme sempre no chão duro, ao ar livre, perto das portas e nos caminhos, pois puxou à mãe; e a necessidade acompanha-o sempre. Por outro lado, a exemplo de seu pai, está sempre à espreita do que é belo e do que é bom; é viril, resoluto, ardente, é um caçador de primeira ordem, está sempre inventando manhas; aspira ao saber e sabe encontrar as passagens que o levam a ele; passa todo o tempo de sua vida filosofando; é um maravilhoso feiticeiro, e mágico, e sofista. É preciso acrescentar ainda que, por natureza, não é imortal nem mortal. Num mesmo dia, ora floresce e vive, ora morre; depois revive quando por ele perpassam os recursos que deve à natureza de seu pai, mas o que se passa nele, incessantemente, lhe escapa; assim sendo, o Amor não está jamais na indigência nem na opulência.  Por outro lado, mantém-se entre o saber e a ignorância; e eis o que acontece: nenhum deus se ocupa em filosofar nem deseja se tornar sábio, pois já o é. E, de uma maneira geral, quando se é sábio não se filosofa; mas os ignorantes, também eles, não filosofam e não desejam se tornar sábios. É isso justamente que é deplorável na ignorância: não se é belo, nem bom, nem inteligente e, no entanto, se acredita sê-lo. Não se deseja uma coisa quando não se sente a sua falta. – Quem são, Diotima, perguntei, os que filosofam, se não são nem os sábios nem os ignorantes? – É muito claro, respondeu, até uma criança o veria imediatamente: os que se encontram entre os dois; e o Amor deve estar entre eles. A ciência, com efeito, está incluída entre as coisas mais belas; ora, o Amor é amor pelo belo; impõe-se, portanto, que o Amor seja filósofo e, por ser filósofo, que esteja no meio-termo entre o sábio e o ignorante. A causa disso está na origem, pois ele nasceu de um pai sábio e cheio de recursos e de uma mãe desprovida tanto de ciência quanto de recursos. É essa, meu caro Sócrates, a natureza desse demônio.(PLATÃO. Obras Completas: O Banquete, 203b-204b.)

Eros e Psique

O mito descrito neste diálogo platônico, reporta  à origem do deus Eros, sua gênese, no mesmo dia do nascimento de Afrodite, motivo pelo qual, está intimamente unido a ela. Filho de Poros (abundância) e Penia (carência, pobreza) o Amor terá sempre esta dimensão de dualidade: ao mesmo tempo em que se sente pleno, está vazio. Ora, ao mesmo tempo em que vive a penúria e a carência pelo lado materno, deseja o belo o bem, deseja conhecer, pelo lado paterno.
Nesse sentido, de modo magistral, Platão dá-nos a refletir sobre a natureza da Filosofia, pois que identifica a mesma com a figura do Amor. A relação entre ambos reflete-se na condição mesma do Amor. O filósofo, na opinião platônica está no mesmo nível do deus Eros. Reconhece sua carência de saber, sabe ignorar, mas não deixa de ser atraído pela beleza do conhecimento. Sua busca, numa tensão dialética entre o mundo que o cerca, ilusório e enganoso, e a revelação daquilo que é, torna o filósofo aquilo que ele é por antonomásia: amigo da sabedoria, ou melhor, no contexto do diálogo, amante da sabedoria.  Por isso mesmo, o Estagirita  dirá  logo no início da Metafísica que o homem tem, por natureza, sede de conhecimento. Podemos dizer, sem medo de errar, que buscar o conhecimento é inerente à natureza humana e, por isso, em certa medida, todo ser humano é filósofo, ao perguntar-se pelos porquês das coisas que nos cercam. O que é o senso comum senão um primeiro esforço de resolução do homem comum,  sobre as grandes questões que a vida lhe propõe? 
No entanto, aquele que se contenta com essas primeiras respostas, incipientes e incompletas,  parecem-se com o lado Penia herdado por Eros.  Poderíamos então dizer que “puxará”  o lado de Poros, o filósofo, pois este não se contenta com o senso comum, mas vai em busca do conhecimento da verdade pelo caminho metódico da Filosofia.
A bela imagem utilizada por Platão, embebida do viés mítico leva-nos a considerar com simpatia e deleite a natureza da atividade filosófica.
Platão utiliza-se da linguagem mítica para demonstrar o que quer transmitir:  que o ser humano traz em si a semente da Filosofia. Deseja-a, pois é carente de saber  ao mesmo  tempo que  para ela, a sabedoria,  é atraído.
O ambiente alegórico do diálogo constrói a cena filosófica magistral em que a demonstração se fará como que “naturalmente”, levando o leitor à convicção pela empatia com o texto e com os argumentos, apresentados com sabor de poesia.
Dito isto, podemos inferir que o uso de metáforas no diálogo  supra tem a função precípua de levar o leitor à conclusão desejada pelo autor do diálogo. Nesse sentido, tem razão Hegel ao dizer:
“O Belo, o Sagrado, o Eterno, a Religião e o Amor são as iguarias que se exigem para despertar o prazer de provar. O apoio e a difusão progressiva da riqueza da substância devem ser buscados não no conceito, mas no êxtase, não na necessidade da coisa que procede friamente, mas no férvido entusiasmo.”   Ou seja, a utilização do mito ou da alegoria como temos no exemplo do diálogo dado, foi o veículo utilizado por Platão, no caso, para inculcar no leitor a verdade de sua demonstração, que, ao invés de ser argumentativa, traz uma fisionomia metafórica utilizando-se dos elementos míticos; Eros, Poros, Penia e a cena mitológica que, aqui, serve também como cena filosófica.
O final deste trecho do diálogo leva-nos àquilo que Platão sempre colocou como estratégia na boca de Sócrates: fazer o leitor chegar à conclusão desejada pelo autor e, mais que isso, aderir a ela. A beleza do mito como que “embriaga” o leitor num êxtase afetivo que gera a empatia necessária para que as idéias veiculadas pelo mito sejam absorvidas e assumidas como verdadeiras.


HISTÓRIA: O QUE É? UM "BRAINSTORM"


HISTÓRIA: O QUE É? -  UM “BRAINSTORM”


A pergunta parece simples. A reposta, nem tanto. A presença da História no cotidiano da humanidade é fato, é evidente. No entanto, rios de tinta já foram vertidos ao longo do tempo, no sentido de se conhecer, pensar  e avaliar a existência e a necessidade dessa disciplina tão fascinante e, ao mesmo tempo tão fluida, como a História.  Sabemos que desde os primórdios, o ser humano se preocupou com ela, ou seja, se preocupou com o registro sobre si mesmo. É próprio da natureza humana (no sentido aristotélico) registrar a memória dos fatos. Por isso,  podemos com toda a propriedade falar do “Homo historicus”.  Portanto, partimos já de um pressuposto conhecido: a História fala da realidade do ser humano. Isto, de per si, já seria motivo de reconhecermos a importância desse componente.  Mas, como tantas outras ciências humanas e outras não tão humanas assim, a História tem um objeto e um método que lhe são próprios. Talvez aqui  nos interesse sobremaneira, até por conta da inquietação apontada no título, os desdobramentos de seu objeto, suas implicações para nós hoje, humanidade adentrada no século XXI.
Quanto ao objeto da história, igualmente muito se tem elocubrado. Há desde aqueles que preconizam que a História não é ciência  e nem possui objeto até aqueles que vão no sentido diametralmente oposto. Ficaremos aqui com uma solução que me parece mais segura, dita por Paul Veyne. Segundo ele, a história seria formada por  eventos reais que têm o homem como ator”. A frase em seu bojo nos reporta ao objeto que procuramos: “eventos reais”. A reflexão dos desdobramentos desses eventos na formação da consciência humana e, portanto da sua identidade, é a finalidade do presente artigo.
Sabemos que a História, tal como a abordamos até hoje, nasceu entre os gregos antigos. Filha da memória, a História tinha tanta importância, pois  evidenciava o “ser grego”, que Clio, uma das Musas, foi encarregada de protegê-la e inspirá-la. Assim, acreditada sob a inspiração dos deuses,  Heródoto, ainda fortemente influenciado pela mentalidade mítica pode cunhar sua célebre máxima sobre a História, mestra da vida. E esse mesmo Heródoto, por ter introduzido a História no âmbito da ciência, considerando fatos e não apenas a gesta dos deuses, é o “Pai da História”.
Outra problemática de relevo que se coloca hoje é com relação aos limites da História. Até que ponto é ela ciência ou não? Historiadores há que pretendem que a História é uma ciência. Outros não comungam da mesma idéia. História, Sociologia e Filosofia são partes de uma mesma trama. No século XIX tentou-se a divisão. Continuam entrelaçadas. Uma é fundamento da outra, sendo a História aquela que colabora com a narrativa construída a partir de fontes interpretadas e reinterpretadas contínuamente.
Nesse sentido, a História representaria realmente a memória da comunidade? Será que ela realmente comporta a interpretação de uma sociedade em dado período cronológico da aventura humana sobre o globo? Se olharmos, por exemplo, a atividadade jornalística, ela tem contribuído mais que os historiadores para essa leitura, uma vez que o historiador trabalha eminentemente na academia, isolado,  não necessariamente, portanto, falará a mesma língua do leitor do Ensino Médio. O historiador, enquanto tal, deixa de falar uma linguagem próxima ao leitor comum.
Ora, a História somente tem sentido se tiver uma função social. Se a discussão não sair do grupo restrito de especialistas, torna-se problema. Desse modo é que ouve-se dizer que “a história acabou”.  No século XVIII o grande Kant dizia: “ não  é possível conhecer a essência dos fenômenos”.  Será então, que é possível conhecer o passado como foi ou percebê-lo fenomenicamente? Pois se já é difícil perceber o presente, que dirá o passado? O historiador, condicionado pelo seu tempo e sua cultura, comete anacronismos ainda que inconscientemente.
A ciência, pois, como a temos hoje é um conceito que evoluiu desde Copérnico, Galileu e Descartes – generalização da realidade baseada em modelo que necessita de método e experimentação para ser científica.  De fato, para a História ser ciência, é necessário definir o método histórico.  Mas, apesar disso, a História não se constitui como ciência no sentido das ciências exatas e biológicas.  Não se trata de uma experimentação que comprova a teoria.  O historiador não utiliza um tubo de ensaio num laboratório para istória não é ciência no sentiHistória nH


provar sua tese.
No século XIX o positivismo pretendia fazer da História uma ciência. O positivismo é a ciência da positividade que se opunha ao iluminismo, pois esse, na visão positivista,  queria destruir as instituições sociais. Para o positivismo, a História é ciência pelo simples fato  de que há fontes que nos trazem o passado. Os documentos falam por si. Aqui surge um fator complicador, se se aceita a tese positivista: a ciência feita como redução a modelos. A história seria, então, um produto anacrônico.  Um modelo é sempre reuducionista. No entanto, aquilo que entendemos como História diz mais respeito ao hoje do que aquilo que foi. Afinal, para isso há a pesquisa histórica: a busca da compreensão do que somos hoje. Mas, se a História é a leitura  do passado agora, então ela tem por natureza ser anacrônica. E se o historiador achar que para ter ciência histórica deve fugir do anacronismo, então, não poderá se-lo a contento.
Outro problema: cada um de nós observa de uma maneira e a partir das próprias experiências que já tem, tece interpretações diferentes de um mesmo fato. Isso interfere na utilidade da História? Creio que não, pois se a História está presente na sociedade para responder a  problemas atuais,  essa validade independe da veracidade ou não de determinada  interpretação dada.  Desse modo, temos o postulado da Escola dos Anais que fala de “histórias” – plural. Ou seja, um mesmo fato é interpretado de várias maneiras diferentes.  Assim, uma interpretação não anularia a outra.  Podemos falar, talvez, em vários paradigmas, bases diferenciais sobre os quais teorias são construídas. A Escola dos Anais vai postular outros paradigmas além da macro-história: a micro-história e a história regional. Essa postura em ciências exatas, quebraria os paradigmas. Não em História. Um paradigma não anula o outro.
Ocorre, no entanto, que essa convivência entre paradoxos cria um problema em termos de ensino. O exemplo clássico repousa na interpretação sobre a descoberta do Brasil. Acredito que o professor tem obrigação de dizer: o fato oficial, digamos assim, é tal. Mas existem outras interpretações. Senão, tornar-se-á apenas uma memorização de fatos. E só quando há contestação de fatos, a História contribui para a consciência de uma sociedade, acrescentando algo à sua identidade. Estamos superando um modelo de ensino de cunho “fordista”, ou seja, fragmentado, uma fragmentação que impede de ver mais longe, gerando seres fragmentários.  Antes disso a escola não tinha seriação  - havia um contexto mais humanista, digamos assim.  Até o século XVIII Filosofia e História estavam na mesma “prateleira”. O iluminismo dividiu e estratificou o conhecimento em “disciplinas”.   O fato é que não é possível separar História da Filosofia e da Sociologia.  No entanto, o historiador vai insistir em separar. Daí resulta que, enquanto a Filosofia ceita que certas verdades são provisórias, a História nem sempre aceitará.
E então nos deparamos com outro problema: a questão da subjetividade que, em História, passa pelos agentes que a produzem. O historiador produz a história baseado em fatos.  Nós somos produtores da História. E daí a pergunta: será que o que deixamos registrado individualmente diz respeito à coletividade? Exemplo: em um tribunal, um juiz deveria julgar com neutralidade através de fatos. Mas ao julgar o faz a partir de conceitos particulares. A sentença pode ser vista como uma decisão social, mas é marcada pela subjetividade. Assim faz o historiador.  Do mesmo modo, um jornal é fonte. A narrativa de uma notícia de um jornal A não é igual à mesma notícia em num jornal B, pois além da individualidade, há a intenção da fonte – os pressupostos editoriais de cada jornal.  As fontes sempre terão a questão da intencionalidade de quem produziu a fonte (culturas, ideologias, influências, preconceitos, etc.).
Como solucionar a questão da interpretação?  O historiador deveria fazer um trabalho  de separar o joio do trigo. É possível? Segundo Paul Veyne “a História tem grande proximidade com a ficção”. Segundo ele, o historiador quando escreve, não escreve diferentemente de um romance. A interpretação do passado é ficção. Isso não significa que não é ciência, pois é verossímil quanto à fundamentação mas tem uma carga de imaginação. Assim, a História é literatura também. Mas não uma literatura qualquer. Quando o historiador escreve, o faz par um público alvo, que são seus pares. Escreve, pois, com uma linguagem diferente. Mesmo tentando chegar a um público geral, muitas vezes não consegue atingir. O que acontece com  a linguagem? Se o livro não conversa com o leitor, não serve para nada. Isto talvez  ocorra porque o historiador, enquanto tal, está mais preocupado em representar a memória do período que quer descrever.
Mas o que é memória? São fatos que representam a identidade de pessoas? É recordação? Memorizar é recordar? Será reminiscência, ou seja, narrativa do que foi o fato, sem, no entanto, dele participar? Pode-se falar de memória coletiva, mas não na História e sim, no mito. Porque o historiador representa “memórias”, conjuntos que expressam a realidade atual através de uma narrativa específica. Assim, a História, sendo uma memória múltipla, vai cair na área da literatura, como foi dito. E a estrutura lingüística diz respeito a um contexto que, se retratado, estrá se fazendo História. Existe, pois, uma linha muto tênue entre História e Literatura.
Enfim, a importância da História como tal, é fomentar o debate. Essa não é função precípua apenas da Filosofia. Aliás, qualquer área da educação deve fazê-lo.  Não importa se a História é ciência ou não, o que importa é a História continuar convivendo com a multiplicidade de paradigmas e com os pardoxos. De fato, apenas assumindo essa atitude eminentemente socrática, a História poderá continuar sendo “mestra da vida”.







A QUESTÃO DO CONHECIMENTO EM PLATÃO E POSSÍVEIS DESCOBRAMENTOS PARA O HOMEM DE HOJE



REFLEXÃO SOBRE A QUESTÃO DO CONHECIMENTO EM DUAS OBRAS PLATÔNICAS: TEETETO E FÉDON E POSSÍVEIS DESDOBRAMENTOS EXISTENCIAIS PARA O HOMEM DE HOJE
Prof. Atílio Monteiro Júnior
Filosofia e História - Colégio FAAP
Artigo publicado na revista "Qualimetria" da Fundação Armando Alvares Penteado - FAAP

Platão e Aristóteles (detalhe de "A Escola de Atenas")


INTRODUÇÃO
A seguinte reflexão poderá parecer por demais acadêmica. No entanto, sendo esta uma instituição de excelência (Colégio FAAP) na construção do saber de nossa juventude, quer me parecer que se torna oportuno desenvolver mais frequentemente colocações que emanem do campo filosófico, pois que, este precipuamente, tem a qualidade de se perguntar por tudo o que é, tudo o que existe, e como existe, ou seja, gerar inquietação e, consequentemente, busca por respostas, como é da natureza da filosofia.
Nesse sentido, inauguro esta participação oferecendo um pequeno trabalho comparativo e de recorte entre duas obras conhecidas de Platão, filósofo de primeira grandeza na plêiade dos pensadores da humanidade, como sabemos. A primeira delas é o diálogo Teeteto, sobre a questão do conhecimento. A outra, é Fédon, diálogo sobre a existência da alma. Se for oportuno, a intenção é continuar no futuro, com outros nomes não menos importantes e influentes no nosso modo de pensar ocidental até hoje.
Platão via a construção do conhecimento fortemente determinada por uma condição fundamental: a entrega progressiva e total da mente ao processo dialético, que levaria a pessoa a desprezar as coisas sensíveis e atingir a “theoría”, ou seja, a contemplação da verdade, imune das ilusões que os sentidos podem trazer. Ou seja, Platão faz uma crítica severa ao empirismo como fonte de conhecimento. Empirismo significa conhecer através da experiência que os sentidos nos dão. Esta será, inclusive, a base da epistemologia aristotélica, posteriormente, e de outros tantos nomes quer medievais, quer modernos e mesmo contemporâneos.
Mas as limitações do empirismo apontadas ao longo de todo o Teeteto são novamente enfatizadas no Fédon. Neste diálogo, Platão vai mais longe e mostra que superar o empirismo implica discutir a moral e a imortalidade da alma. Vejamos como.

A ARGUMENTAÇÃO PLATÔNICA CONTRA O EMPIRISMO
Fédon e Teeteto constituem, por assim dizer, duas faces da mesma moeda. O pano de fundo  que está em foco é o conhecimento e sua natureza, ou seja: o que é e como o adquirimos. Seria via sentidos, sensações? Via opinião verdadeira? Via opinião verdadeira com justificação? Ou seria via raciocínio a partir de reminiscências de uma alma imortal e em processo de purificação? Enfim, a problemática colocada por Platão embrenha-se no intrincado labirinto dos argumentos. Nesse “labirinto” também se faz necessário um fio condutor. Nos dois diálogos, tal fio é representado pela questão “o que é conhecimento”, que passará pelo crivo de diversas instâncias argumentativas, desde a questão empírica, isto é, se é possível adquirir conhecimento através da experiência sensível, até a alma contemplativa do ser em si na beatitude da vida pós-morte. Diga-se que, sobretudo em Fédon, o método socrático e sua dialética aparecem em toda a plenitude.
Em Platão, pois, dizer que podemos obter conhecimento através das sensações ou de opiniões justificadas, não é possível. Tal empirismo, que nos coloca tremendamente dependentes dos sentidos é, em última análise, enganoso para adquirir conhecimento. Esta tese foi demonstrada em Teeteto e em boa parte de Fédon.
Se tomarmos a expressão “empirismo” como a impressão que as sensações causam em nós, podemos enumerar alguns argumentos de Sócrates que corroboram a conclusão de que conhecimento não é sensação: quando refuta a proposição heraclitiana “as coisas são como aparecem a cada um, sendo sensação do que é e não ilusão”. Porém, aqui não temos uma verdade objetiva. Como é possível duas pessoas terem sensações diferentes de um mesmo objeto? Nesta perspectiva, Platão, sempre pela boca de Sócrates, vai desenvolver a teoria da sensação em que temos forças ativas, capazes de mover e forças passivas, capazes de serem movidas. Desse jogo ininterrupto deriva o que existe e desse encontro resulta a sensação. É apresentado também o argumento do sonho: sonhando posso voar, acordado não posso. Onde a verdade? Outro argumento que podemos exemplificar do texto é o da memória. Ou seja, se vejo algo num tempo inicial então conheço algo. Se não olho mais para esse algo, não o conheço mais. Se assim fosse, teríamos que concluir que conheço e não conheço ao mesmo tempo, o que é absurdo.
Ao criticar o  heraclitianismo, Sócrates diz que, se considerarmos válida a tese de Heráclito, que a mudança se opera em termos de lugar e de qualidade, temos que admitir que esta mudança tem que ter sempre os dois sentidos. Mas se as coisas mudam quanto à qualidade, apenas, não temos condições sequer de nomear o que existe, pois no momento mesmo que nomeio, a coisa já não é ela mesma. Mais uma vez, admite-se  que o conhecimento não resulta de sensação ou de empirismo, experiência.
Podemos apontar também a crítica que Sócrates faz a Protágoras, que afirmava ser “o homem a medida de todas as coisas”, pois, se assim fosse, não teria sentido o ensinamento desse filósofo sofista, uma vez que conhecimento seria o que aparece a cada um e, portanto, não haveria diferença entre o sábio e o ignorante.
Ainda na linha de refutar os sentidos como origem de conhecimento, o argumento da língua bárbara  mostra que, quando vemos uma palavra escrita de outra língua, podermos reconhecer até a cor e os caracteres, mas não o sentido da palavra.
Ora, tentando responder ou resolver a questão se conhecimento é sensação, Sócrates diz que conheço no momento em que a alma percebe a diferença ou semelhança entre os seres. Aí é que se dá a percepção de que o objeto é: a beleza, a justiça, a bondade, etc. Aqui Platão já aponta para o que será tratado em Fédon. Portanto, para o nosso filósofo, falando sempre pela boca do mestre Sócrates, conhecimento não é sensação, não nos vem pelos sentidos, porque o conhecimento não se dá no momento mesmo da captação do objeto pelos sentidos, mas sim no momento em que a alma julga, emite juízos a partir  de critérios comparativos  de diferença, semelhança, etc. Seria desta maneira que o ser humano pode conhecer algo. Na medida em que se dá conta e apreende o que a coisa é, a partir de uma operação interior. Para que isso aconteça, as coisas não podem estar em contínuo movimento, ou mudança, pois a alma apreende categorias que são eternas e não mudam, não estão sujeitas ao devir.
Mesmo quando se toma conhecimento como opinião verdadeira, se vai afirmar que não é possível formar opinião sobre o que não sabemos. Opinião falsa não seria possível, senão,  teríamos que tomar algo que  conhecemos, não pelo que é, mas por outra coisa que já conhecemos. Não seria possível, num primeiro momento, trocar uma idéia pela outra, pois a mente seria como que um recipiente onde as idéias são depositadas. Assim, conhecer seria ter algo imediatamente presente á mente. Do mesmo modo, não é possível tomar o que se sabe pelo que não se sabe. E ainda, continuando a lógica do raciocínio socrático, formar opinião falsa seria o mesmo que pensar no que não existe, seja enfocando o todo (absoluto), seja a parte (relativo). Por exemplo, pensar na beleza de Teeteto, significa pensar em Teeteto como tal.
Deste modo, não é possível pensar o que não existe, ou pensar em nada. Aqui Sócrates retoma Parmênides pois pensamento será sempre sobre o que é. Não é possível pensar sobre o que não é.
Por outro lado, o famoso exemplo do modelo de cera, inclui o aspecto da memória. Conhecemos quando gravamos profundamente a idéia das coisas que recebemos das sensações e, se a cera for boa, gravará mais duradouramente. Assim a memória passa a ter um aspecto importante de conhecimento e não apenas percepção de algo. Mas a memória tem seus inconvenientes. A partir da memória, é possível trocar uma coisa por outra. É possível o engano. E este se dá quando uma das coisas consideradas  está na sensação e a outra na memória.
Já no exemplo do aviário, Sócrates propõe mais um argumento para tentar chegar à possibilidade de opinião falsa. Nesse caso, a mente humana seria vazia desde a infância e desde então, vão sendo depositados na mente os conhecimentos, como se fossem pombos num aviário, onde se vai buscar o que se quer, como num recipiente. A opinião falsa ocorreria ao se tomar uma idéia por outra.
Ao voltar à investigação da opinião verdadeira, Sócrates evoca o exemplo do juiz  que pode emitir uma sentença a partir  do que ouviu sem ter presenciado o crime. Assim, pode haver opinião verdadeira sem ser conhecimento. Neste ponto, Sócrates mostra que todas as coisas são formadas ou compostas de elementos primitivos ou simples que não são possíveis de divisão. Também podemos explicar o que existe por palavras, ou pelos sinais que distinguem as coisas. Por exemplo: ter nariz achatado, e olhos saltados reporta-me a Sócrates ou  melhor, à idéia de Sócrates.
O diálogo Teeteto, porém, apesar dos esforços argumentativos de Sócrates, não dá conta de modo cabal da questão do conhecimento. Ela fica em aberto. Mas em Fédon, temos um salto qualitativo considerável rumo a uma solução sobre o que é conhecimento, uma vez que, de plano, Sócrates, à beira da morte, alegremente até, demonstra a necessidade de superar toda a experiência sensível para se chegar ao conhecimento em si. Para Sócrates, as sensações são realmente enganosas e atrapalham a busca  da verdade.  Assim, libertar-se das paixões desordenadas e subjugar o corpo o mais possível constitui o trabalho perene do verdadeiro filósofo que, dessa maneira, se prepara para o fim último de sua vida: a morte, não como fim de tudo, mas como libertação do mundo sensível que obstaculiza a aquisição do verdadeiro conhecimento, aquele único que pode fazer o ser humano feliz.
Desse modo, quem busca o conhecimento verdadeiro, deve afastar-se das coisas corporais, pois enquanto a alma procura a verdade, através do corpo pode ser enganada pelos sentidos, com desejos desordenados, necessidades de manter-se ou mesmo falsas necessidades (consumismo), tristeza, alegria, ira, dor, cansaço, ansiedade, etc.  Platão preconiza que conhece a essência das coisas quem examina as coisas com o pensamento sem mistura de nenhum outro sentido corporal. Daí a implicação moral para o agir de quem busca a verdadeira sabedoria e o conhecimento. Para atingir esta purificação, a alma deve agir coerentemente durante a vida, abstendo-se o mais possível de tudo o que possa configurar empecilho para a sua ascensão espiritual rumo ao conhecimento, quando verá o ser em si, o belo em si, a justiça em si. As coisas corpóreas e materiais teriam  meramente o papel de ajudar a lembrar do conhecimento, enquanto possível nesta vida,  não alcançá-lo.
Assim, a moral que aqui se propõe visa acostumar o filósofo a agir bem, sem apego ou  paixão alguma desordenada pelo que quer que seja, a fim de, libertado deste corpo mortal, fruir a visão da realidade em si. Para tanto, faz-se mister admitir que a alma não desaparece junto com o corpo após a morte. Com os argumentos dos contrários, Sócrates afirma que todas as coisas nascem da mesma forma, isto é, das coisas contrárias nasce o novo. Ou, poderíamos dizer de modo junguiano, mais modernamente, dos opostos temos a novidade. Assim ocorre com o quente e o frio, o seco e o úmido, o fraco e o forte, o claro e o escuro, masculino e feminino, etc. Ora, a vida também possui o seu contrário: a morte. E para Platão é necessário que a morte tenha seu contrário, que é renascer. E se os vivos nascem dos mortos e estes daqueles, isto provaria que a alma dos  mortos existem em algum lugar de onde voltam à vida. Esta idéia serviu para Platão sustentar a teoria da reminiscência. Diante da colocação de que conhecer é recordar, e se esse princípio for exato, é necessário que tenhamos adquirido conhecimento em outro tempo e lugar de coisas que recordamos.
Para Platão, portanto, quando obtemos conhecimento, de certo modo, este é recordação. E as recordações se estabelecem seja por coisas semelhantes, seja por coisas dissemelhantes. Por exemplo, ao ver uma foto e reconhecer a pessoa fotografada. Mas a reminiscência vai requerer uma distinção entre a igualdade nas coisas e a igualdade em si. Só é possível perceber a igualdade nas coisas porque já se tem a idéia de igualdade. E não existe nada no mundo sensível que seja perfeitamente igual, como o é a igualdade em si. Logo, a igualdade nas coisas sensíveis é imperfeita.
Mas se tínhamos conhecimento do que é em si, quando foi que o perdemos? Antes do nascimento não poderia ser, porque foi quando tínhamos a visão das coisas em si. É preciso que a alma tenha existido antes do nascimento pois após o nascimento começou a ter a experiência dos sentidos, as sensações e, como já foi dito, para Platão, não se conhece através dos sentidos ou da experiência sensível.
Devemos ainda examinar o argumento da afinidade, pelo qual Platão diz que a alma é afeita ou tem afinidade não com as coisas compostas mas sim com as que não são compostas. A alma está ligada  ao que permanece. Se uma alma se livra do corpo ainda com “apegos” ao sensível, e assim, de certo modo, “impura”, irá habitar um corpo de acordo com a sua condição. A alma, porém, purificada por uma vida de ascese, tem afinidade com o que não muda e não é composto, mas simples. Porque a realidade em si não é passível de mudança. Só o filósofo tem condições de romper com o ciclo de voltas a este mundo, porque ele não tem afinidade com o que é sensível, treinado que está pela ascese que o liberta dos apegos desordenados.
Nesta altura do Fédon, resta ainda provar a imortalidade da alma, cuja objeção é colocada por dois argumentos: o argumento da lira e o argumento da roupa. Pelo argumento da lira, ou da harmonia, Sócrates afirma que a lira e suas cordas estariam para o corpo, assim como a harmonia dos sons que o instrumento produz está para a alma. Ao se quebrar a lira, quebra-se também a existência da harmonia. O argumento da roupa vai dizer que tal qual um tecelão que usou várias roupas durante a vida, chega um momento em que ele morre e desaparece, bem como a roupa que usava.  Desse modo poderia se mostrar que a alma não é imortal.
Sócrates refuta esses argumentos ao dizer que, quanto ao argumento da harmonia, é incompatível com a reminiscência e que a relação alma/corpo não é a mesma que a relação harmonia/lira. A alma tem capacidade de mandar no corpo e suas vontades. O mesmo se aplicaria ao argumento da roupa.
Fédon supera satisfatoriamente o empirismo de Teeteto, dá conta da questão do conhecimento desenvolvendo a noção da alma como sujeito do conhecimento e não mais a experiência sensível. Para Platão, as experiências sensíveis não têm a capacidade de revelar o ser em si mesmo, pois as sensações são incertas e levam ao erro.
Possuidor de alma imortal e indestrutível, o homem pode conhecer. Porém, para alcançar esta dádiva, deve enveredar e abraçar o caminho ascético da filosofia. É todo um programa de vida. Sabemos que muitos elementos desse programa de vida serão retomados com maior consistência até em tempos não muito distantes de Sócrates e Platão.

Acrópole de Atenas

 
POSSÍVEIS CONSIDERAÇÕES PARA O NOSSO TEMPO
Feito este recorte argumentativo entre as duas obras do corpus platonicum, Teeteto e Fédon, onde se tenta definir o que é conhecimento e como obtê-lo, a partir da teoria das idéias e da dialética, poderíamos fazer algumas considerações.
A primeira, seria a tentação de tomar o pensamento de Platão e seus argumentos como algo obsoleto para nossos dias, não servindo senão como exposição no “museu” da evolução do pensamento humano. Afinal, para o homem hodierno, aceitar que as coisas que vemos são apenas imagens imperfeitas que nos enganam, é risível. Já o discípulo mais famoso de Platão, Aristóteles, tinha demonstrado a inconsistência da teoria do mestre. Concluiu dizendo que “não há nada na mente que antes não tenha passado pelos sentidos”. E assim é. De fato, não adianta imaginar que a parede ou a cadeira que tenho diante de mim não são reais de fato. Não posso tentar atravessar uma parede sem o risco de ir parar numa enfermaria... Nesse sentido estrito, o pensamento platônico não dá conta de muitas questões. Mas há outro sentido.
E aqui adentro a segunda consideração, que chamo sentido lato. Para  Platão, a realidade nos engana. E hoje, haveria algum tipo de realidade que pode nos iludir? Sabemos que sim, e vários. Embora o conhecimento se inicie pelos sentidos, de fato, e constitui também a base da ciência, depois de comprovada a experiência, o ser humano vive situações diversificadas que, em última análise, são ilusórias. E todas, situações criadas pelo próprio homem.
Hoje, a palavra “virtual” talvez seja das mais utilizadas no nosso mundo pós-moderno. E aí, o desenvolvimento tecnológico, em que pese toda a importância e utilidade para o bem estar da humanidade, contribui eficazmente para o que chamo de um crescente “estado de virtualidade” do homem no mundo. Falamos de “amizade virtual”, “negócio virtual”, “namoro virtual”, até “sexo virtual”...  Tal estado de virtualidade não seria tão ilusório ou enganoso quanto a realidade dos sentidos rejeitada por Platão?
Não se trata, em absoluto, de terçar armas contra a realidade que temos, nem contra a tecnologia, mesmo sendo prolífica engendradora de ilusões. Mas antes, trata-se de, com os pés no chão, perceber e dar a perceber, sobretudo pelo processo educativo, que nosso tempo traz em seu bojo, entre tantas contradições, mais essa, ou seja, há situações onde o ser humano é levado ao erro, ao engano, à ilusão e, consequentemente, à frustração e à decepção. Não é raro alguém se “apaixonar” por outra pessoa via internet, apenas virtualmente, até chegar a conhecer a pessoa, mas perceber que tudo o que “sabia” dela através de um chat era mentira. Ou até correr risco de vida. Tecnologia em suas múltiplas formas: internet, blogs, facebook, twitter, chats, sites, etc. são meios que devem ser bem utilizados.. O que significa “bem utilizados”?  Apliquemos a “regra do tanto quanto”. Uma coisa  é boa tanto quanto nos aproxima de um bem, se leva ao crescimento humano, ao conhecimento ou ao serviço do outro. Uma coisa é má tanto quanto  afasta do bem, leva ao prejuízo de outros, promove a mentira e o erro.
Outra instância ilusionista, como sabemos, é a propaganda. E de longa data. A “alma do negócio” não é outra coisa senão fazer alguém acreditar que precisa de algo de que, na maioria das vezes,  não tem necessidade alguma. “Um raro prazer”, para um vício comercializado, ou uma paisagem paradisíaca e o slogan “sinta-se um cliente preferencial tal e tal” ou ainda “dê passagem para a diferença” referindo-se a um carro de última geração o qual você não pode deixar de ter, são chamadas tão ilusórias quanto o fato de que têm o condão de transformar alguém em gente só por possuir tal coisa. E ai do mortal que  não tiver o perfume que atrai beldades, barras de ouro, e juventude eterna. Sim, porque fora as propagandas de planos de saúde ou de cola para dentadura, nunca os protagonistas são idosos, e quando são, entra em cena  um bom photoshop, outra ferramenta de ilusão a cada capa de revista desse país...
E aqui, creio que um dado ensinado pelo velho Sócrates, pode nos ser muito útil. Sócrates ensina, como vimos acima, que para vencer a ilusão da realidade, o ser humano deve trilhar o caminho do filósofo, que renuncia as coisas passageiras e foca sua caminhada naquilo que é essencial, que é duradouro e seguro, através de um treino (ascese) contínuo de escolhas e renúncias. Ora, o que poderia corresponder a esse projeto de “segura felicidade”, digamos assim, para nós, hoje? Uma caminhada que nos ajudasse a prosseguir na vida com critérios seguros de validade de nossas opções?
Creio que duas instâncias, intimamente dependentes, uma da outra: valores e educação. Por valores, podemos entender o que é bom e útil em muitas coisas e com variados matizes para cada um. No entanto, há valores que são bons para todos, sem exceção. Respeito, solidariedade, altruísmo, compaixão, misericórdia, partilha, aceitação, diálogo, entre tantos, são exemplos que independem do perfil social, político e religioso. São universais. A não ser para algum radical tresloucado.
Mas esses valores não se implantam por si. É necessário não apenas ensiná-los, mas sobretudo, vivê-los. E aí a parte mais exigente, pois depende do processo educativo. Processo este que não se inicia na escola, como muitos pensam, mas na família. Ela é a primeira e mais importante artífice deste processo. A escola poderá apenas subir as paredes do alicerce que a família tiver colocado antes. O que não é pouco. Mas o fundamento depende do núcleo familiar. É lá que a educação em valores será semeada. Sobretudo pelo exemplo. Pois a criança tem os pais como referencia máxima nos seus primeiros anos de vida. Assim, se ela vê seus pais ou responsáveis justos, honestos, respeitosos, etc. será também estimulada a sê-lo. Se não, vai se questionar: se não vejo meus pais serem honestos, nem respeitosos até um para com o outro, não vejo diálogo, nem aceitação, porque hei de sê-lo? Não deve ser importante. E daí, perde-se o bonde da formação humana de um futuro adulto que estará ao sabor das ilusões, muitas vezes das drogas, quando não souber lidar com os “nãos” que a vida trará.
Assim, a ascese socrática apontada acima, para nós educadores, sobretudo pais, mas também professores, pode constituir no tempo precioso que devemos dedicar ao contato pessoal com nossos educandos. A renúncia hoje, para usar uma terminologia conhecida, consiste não em gastar tempo, mas em investir tempo para estar pessoalmente com o outro. Educar é influenciar na vida das pessoas. Isso não se faz “virtualmente” jamais. É no contato pessoal, olho no olho, acolhendo alegrias e tristezas, e ouvindo, ouvindo muito, que poderemos influir nas consciências, para que, ao fazerem escolhas na vida, nossos jovens tenham critérios pautados por valores aprendidos mais com exemplos que com palavras. E, ao fazerem escolhas adequadas, também tenham mais vida com sentido construtivo para si e para os demais.
Enfim, poderíamos estender esta discussão por muito tempo e por muitos meandros recorrendo até aos pensadores do século XX, como Baudrillard, que questionaram a sociedade. Dizia ele que a mídia, por exemplo, cria a hiper-realidade, como capacidade de criar uma realidade virtual que chega a substituir a própria realidade, veiculada pelos meios de comunicação. Curiosamente, tornou-se praxe em muitas aulas de filosofia, trabalhar o filme “Matrix” como meio de entender essa problemática. No entanto, sem um adequado processo educativo que envolva o binômio família/escola na missão comum de educar não apenas em conteúdos acadêmicos, mas sobretudo valores que se estendam eficazmente para a vida, a juventude pode continuar presa fácil das armadilhas do mundo contemporâneo, por não saber fazer escolhas certas. E isso não é ilusão.