quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

O AMOR E A FILOSOFIA EM PLATÃO


O AMOR E A FILOSOFIA A PARTIR DE UM FRAGMENTO DE
“O  BANQUETE”,  DE PLATÃO.


O nascimento do amor - O Banquete, 203b-204b, Platão
De que pai ele nasceu, perguntei, e de que mãe? – É uma história um tanto longa; mesmo assim vou contá-la a ti. No dia em que Afrodite nasceu, os deuses deram um banquete. Com eles estava o filho de Métis, Poros. Depois do Jantar, Penia tinha vindo mendigar, o que é natural num dia de abundância de comidas e bebidas, e mantinha-se perto da porta. Poros, que se tinha embriagado com néctar (pois o vinho não existia ainda), entrou no jardim de Zeus e, entorpecido, adormeceu. Penia, na sua penúria, teve a idéia de ter um filho de Poros; deitou-se junto a ele e concebeu o Amor. É por isso que o Amor se tornou companheiro de Afrodite e seu servidor. Concebido por ocasião das festas pelo nascimento dela, por sua própria natureza, ama o belo – a Afrodite é bela. Então, sendo filho de Poros e de Penia, o Amor acha-se na seguinte situação: por um lado, é sempre pobre, e, longe de ser delicado e belo como acredita a maioria das pessoas, é, pelo contrário, rude, desagradável, caminha pelo mundo de pés descalços, não tem morada, dorme sempre no chão duro, ao ar livre, perto das portas e nos caminhos, pois puxou à mãe; e a necessidade acompanha-o sempre. Por outro lado, a exemplo de seu pai, está sempre à espreita do que é belo e do que é bom; é viril, resoluto, ardente, é um caçador de primeira ordem, está sempre inventando manhas; aspira ao saber e sabe encontrar as passagens que o levam a ele; passa todo o tempo de sua vida filosofando; é um maravilhoso feiticeiro, e mágico, e sofista. É preciso acrescentar ainda que, por natureza, não é imortal nem mortal. Num mesmo dia, ora floresce e vive, ora morre; depois revive quando por ele perpassam os recursos que deve à natureza de seu pai, mas o que se passa nele, incessantemente, lhe escapa; assim sendo, o Amor não está jamais na indigência nem na opulência.  Por outro lado, mantém-se entre o saber e a ignorância; e eis o que acontece: nenhum deus se ocupa em filosofar nem deseja se tornar sábio, pois já o é. E, de uma maneira geral, quando se é sábio não se filosofa; mas os ignorantes, também eles, não filosofam e não desejam se tornar sábios. É isso justamente que é deplorável na ignorância: não se é belo, nem bom, nem inteligente e, no entanto, se acredita sê-lo. Não se deseja uma coisa quando não se sente a sua falta. – Quem são, Diotima, perguntei, os que filosofam, se não são nem os sábios nem os ignorantes? – É muito claro, respondeu, até uma criança o veria imediatamente: os que se encontram entre os dois; e o Amor deve estar entre eles. A ciência, com efeito, está incluída entre as coisas mais belas; ora, o Amor é amor pelo belo; impõe-se, portanto, que o Amor seja filósofo e, por ser filósofo, que esteja no meio-termo entre o sábio e o ignorante. A causa disso está na origem, pois ele nasceu de um pai sábio e cheio de recursos e de uma mãe desprovida tanto de ciência quanto de recursos. É essa, meu caro Sócrates, a natureza desse demônio.(PLATÃO. Obras Completas: O Banquete, 203b-204b.)

Eros e Psique

O mito descrito neste diálogo platônico, reporta  à origem do deus Eros, sua gênese, no mesmo dia do nascimento de Afrodite, motivo pelo qual, está intimamente unido a ela. Filho de Poros (abundância) e Penia (carência, pobreza) o Amor terá sempre esta dimensão de dualidade: ao mesmo tempo em que se sente pleno, está vazio. Ora, ao mesmo tempo em que vive a penúria e a carência pelo lado materno, deseja o belo o bem, deseja conhecer, pelo lado paterno.
Nesse sentido, de modo magistral, Platão dá-nos a refletir sobre a natureza da Filosofia, pois que identifica a mesma com a figura do Amor. A relação entre ambos reflete-se na condição mesma do Amor. O filósofo, na opinião platônica está no mesmo nível do deus Eros. Reconhece sua carência de saber, sabe ignorar, mas não deixa de ser atraído pela beleza do conhecimento. Sua busca, numa tensão dialética entre o mundo que o cerca, ilusório e enganoso, e a revelação daquilo que é, torna o filósofo aquilo que ele é por antonomásia: amigo da sabedoria, ou melhor, no contexto do diálogo, amante da sabedoria.  Por isso mesmo, o Estagirita  dirá  logo no início da Metafísica que o homem tem, por natureza, sede de conhecimento. Podemos dizer, sem medo de errar, que buscar o conhecimento é inerente à natureza humana e, por isso, em certa medida, todo ser humano é filósofo, ao perguntar-se pelos porquês das coisas que nos cercam. O que é o senso comum senão um primeiro esforço de resolução do homem comum,  sobre as grandes questões que a vida lhe propõe? 
No entanto, aquele que se contenta com essas primeiras respostas, incipientes e incompletas,  parecem-se com o lado Penia herdado por Eros.  Poderíamos então dizer que “puxará”  o lado de Poros, o filósofo, pois este não se contenta com o senso comum, mas vai em busca do conhecimento da verdade pelo caminho metódico da Filosofia.
A bela imagem utilizada por Platão, embebida do viés mítico leva-nos a considerar com simpatia e deleite a natureza da atividade filosófica.
Platão utiliza-se da linguagem mítica para demonstrar o que quer transmitir:  que o ser humano traz em si a semente da Filosofia. Deseja-a, pois é carente de saber  ao mesmo  tempo que  para ela, a sabedoria,  é atraído.
O ambiente alegórico do diálogo constrói a cena filosófica magistral em que a demonstração se fará como que “naturalmente”, levando o leitor à convicção pela empatia com o texto e com os argumentos, apresentados com sabor de poesia.
Dito isto, podemos inferir que o uso de metáforas no diálogo  supra tem a função precípua de levar o leitor à conclusão desejada pelo autor do diálogo. Nesse sentido, tem razão Hegel ao dizer:
“O Belo, o Sagrado, o Eterno, a Religião e o Amor são as iguarias que se exigem para despertar o prazer de provar. O apoio e a difusão progressiva da riqueza da substância devem ser buscados não no conceito, mas no êxtase, não na necessidade da coisa que procede friamente, mas no férvido entusiasmo.”   Ou seja, a utilização do mito ou da alegoria como temos no exemplo do diálogo dado, foi o veículo utilizado por Platão, no caso, para inculcar no leitor a verdade de sua demonstração, que, ao invés de ser argumentativa, traz uma fisionomia metafórica utilizando-se dos elementos míticos; Eros, Poros, Penia e a cena mitológica que, aqui, serve também como cena filosófica.
O final deste trecho do diálogo leva-nos àquilo que Platão sempre colocou como estratégia na boca de Sócrates: fazer o leitor chegar à conclusão desejada pelo autor e, mais que isso, aderir a ela. A beleza do mito como que “embriaga” o leitor num êxtase afetivo que gera a empatia necessária para que as idéias veiculadas pelo mito sejam absorvidas e assumidas como verdadeiras.


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